O Beijo Gay que salvou o The Sims e a indústria de games

O The Sims mudou a indústria dos games com sua representatividade, e isso fez com que a franquia não fosse abandonada.

O The Sims é muito conhecido por sua representatividade e o jogo vêm quebrando várias barreiras e estereótipos desde seu lançamento nos anos 2000. Não existem limitações por exemplo para o sexo do nosso personagem, ou para o tipo de roupa que ele vai vestir, ou até mesmo sua voz. Nós podemos criá-lo da forma que preferirmos, com estilo que quisermos, criando nossa própria história!

O que você não sabe é que não foi tão simples o jogo se tornar o que ele é hoje. Se não fosse por isso, capaz de nunca ouvirmos o nome ‘The Sims’ em outro lugar, porque o jogo não tinha recursos para se tornar uma grande franquia da EA e estava quase sendo abandonado, até que um simples gesto de amor mudou todo o rumo da história.

O artigo a seguir conta com detalhes, a forma de como um beijo gay salvou o ‘The Sims’ de ser abandonado pela EA, logo no fim de seu desenvolvimento.

A Exposição de Entretenimento Eletrônico de 1999, a E3, uma conferência de videogames que acontece em Los Angeles, Califórnia, foi um evento exuberante, se não ao ponto de ser obsceno. Lá as produtoras de jogos se juntavam por três dias para mostrar seus novos títulos à imprensa e aos consumidores em um circo de publicidade exagerado. David Bowie se apresentou em uma das festas da conferência naquela semana, e Bill Goldberg e outros lutadores suados lutaram em um ringue customizado na gigantesca venda da EA. Longe da ação do palco principal, a EA reservou uma simples área para promover o ‘The Sims’, um projeto ambicioso de simulação social em que quase ninguém fora da equipe que o desenvolvia acreditava.

Para a EA, o ‘The Sims’, na época a mais recente ideia de Will Wright, cultuado designer do jogo de planejamento urbano Sim City, era um projeto herdado de quando a companhia comprou o estúdio de desenvolvimento Maxis. O jogo passava por lento desenvolvimento desde 1993, quando Wright teve a ideia de uma simulação que imitaria o comportamento humano, pertinho da vida doméstica de cada um ao contrário da vista aérea de Sim City. Mas replicar os dramas mundanos da sala de estar em forma de um jogo se provou um grande desafio: o ‘The Sims’ quase foi abandonado várias vezes.

Todos sabíamos que se não pudéssemos gerar interesse na E3 daquele ano, o jogo seria cancelado de vez. A EA. não fez nada para nos ajudar. Eles nos esconderam. O jogo nem foi mostrado no telão com os trailers dos outros títulos.

Patrick J. Barrett III, um dos programadores do jogo.

Mas em poucas horas, um beijo ilícito que não havia sido planejado entre duas personagens no plano de fundo fez do ‘The Sims’ a estrela do evento.

Lukey

Durante o desenvolvimento prolongado do ‘The Sims’, a equipe teve que debater a disponibilidade de relações gays no jogo. Se esse experimento digital fosse refletir precisamente todos os aspectos da vida humana, do trabalho à diversão ao amor, seria natural que ele permitisse relacionamentos homossexuais. Mas também havia o receio de como implementar tal possibilidade sem afetar o jogo de forma negativa.

Nenhum outro jogo permitiu relacionamentos gays antes – ao menos não dessa forma – e algumas pessoas acharam que talvez não fôssemos ideais como pioneiros, já que era um jogo que a EA nem queria para início de conversa. Tínhamos um pouco de medo.

Patrick J. Barrett III

Depois de discutirem por meses, a equipe finalmente decidiu tirar os relacionamentos entre o mesmo sexo do código do jogo.

Quando Barrett entrou na empresa em outubro de 1998, ele não sabia dessa decisão. Em uma de suas primeiras semanas no novo emprego, ele se encontrou sem nada para fazer quando seu supervisor, o programador-líder do jogo, Jamie Doornbos, tirou férias. Jim Mackraz, chefe de Barrett, precisava de uma tarefa para ocupar seu novo empregado, e entregou a Barrett um documento que descrevia como interações sociais no jogo deveriam funcionar; as regras ocultas da inteligência artificial do jogo que ditariam como os personagens deveriam interagir uns com os outros.

Ele não achava que eu conseguiria fazer isso com o Jamie de férias, mas ao menos eu ficaria fora do caminho dele. Nem ele nem eu nos damos conta de que o documento tinha uma descrição de relacionamentos antiga.

Patrick J. Barrett III

O documento era de antes da decisão de excluir casais gays do jogo. As páginas nele contidas descreviam a rede de interações sociais onde toda forma de relacionamento romântico era permitido. Naquela semana, Barrett desafiou as expectativas céticas do seu chefe. Ele escreveu com sucesso o código básico das interações sociais, incluindo os relacionamentos entre o mesmo sexo.

Olhando para trás, percebo que deveria ter questionado o design. Mas fazia sentido, então eu implementei. Mais tarde, Will Wright passou pela minha mesa. Ele me disse que gostou das interações sociais, e que estava feliz de ver que os relacionamentos gays estavam de volta ao jogo.

Patrick J. Barrett III

Ninguém da equipe questionou o trabalho de Barrett.

Eles simplesmente ignoraram. Depois de um tempo, todos se acostumaram com o design estando lá. Era esperado por todos que a EA ia dispensar o projeto, de toda forma.

Patrick J. Barrett III

Em meados de 1999, antes da EA ter a chance de desistir do projeto, foi pedido a Barrett que ele criasse uma demonstração do jogo para mostrá-lo na E3. A demo ia conter três cenas do jogo. Elas seriam cenas continuadas – não seriam uma simulação verdadeira e ao vivo, mas uma pré-planejada, que acabaria da mesma forma sempre que jogada, para mostrar o jogo da melhor maneira. Uma das cenas era o casamento entre dois Sims.

Acabou meu tempo antes da E3, e tinham tantos Sims no casamento que não tive tempo de pré-programar todos eles.

Patrick J. Barrett III

No primeiro dia do evento, os produtores do jogo, Kana Ryan e Chris Trottier, assistiram incrédulos a duas convidadas do casamento virtual se cortejarem e beijarem apaixonadamente. Elas haviam se apaixonado durante a simulação. Decidiram, afinal, escolher aquele momento para expressar seu afeto, ao vivo e na frente de um público com vários canais da mídia. Após o beijo, o ‘The Sims’ dominou as conversas na E3.

Pode-se dizer que elas roubaram a cena. Acho que os caras héteros que fazem jogos esportivos adoraram a ideia de controlar duas lésbicas.

Patrick J. Barrett III
u/Bitchface_bartender

Depois da exibição de sucesso do ‘The Sims’ na E3, o futuro do jogo parecia seguro. Mas Barrett e seus colegas tinham um novo problema para resolver: como decidir a orientação sexual de cada Sim.

Se você criasse uma casa com dois Sims do mesmo sexo, eles sempre se tornavam gays só pelo fato de já estarem um com o outro o tempo todo. Foi quando criei o sistema que determinava a sexualidade dos Sims através de ações feitas pelo usuário.

Patrick J. Barrett III

No jogo, os jogadores podiam interagir com os Sims de diversas formas, levando-os a tomar banho, comer, sair de casa e fazer outras ações.

Certas interações sociais eram determinadas românticas. O jogo registrava se essas ações eram feitas com Sims do mesmo sexo ou do sexo oposto. A fórmula era um pouco mais complicada, mas com o tempo, enquanto o Sim desenvolvia seus relacionamentos, uma preferência era definida.

Patrick J. Barrett III

Se o jogador ficasse atento, um Sim poderia até mesmo ser bissexual.

O sistema funcionou tão bem que o suporte aos relacionamentos gays ficou invisível e fluido. É raro que algo funcione exatamente como você quer. Muitas das minhas outras simulações no jogo deram errado. Essa funcionou perfeitamente. Depois da equipe vê-la em ação, decidiram que eu poderia manter os relacionamentos entre o mesmo sexo, e o tópico nunca mais voltou a ser discutido.

Patrick J. Barrett III

O design altamente controverso era, até certo ponto, protegido por preocupações maiores com o projeto.

A EA estava mais preocupada que o ‘The Sims’ fosse falhar e afetar a franquia do Sim City. Também eram tempos diferentes; as pessoas não eram tão fortemente contra ou a favor de relacionamentos homossexuais. Elas não se esforçavam para encontrá-los e reagirem a eles. A imprensa de direita não tinha a plataforma que tem hoje para gritar. Não tinha Twitter, Facebook ou blogs. Eu achava que as pessoas apareceriam aqui em alguma noite com tochas e facas. Mas nunca aconteceu.

A controvérsia chegou neste ano, quando a Nintendo lançou, no mundo ocidental, seu jogo de simulação ‘Tomodachi Life’, onde relacionamentos gays são proibidos. Os personagens de ‘Tomodachi Life’ podem discutir, flertar, se apaixonar, casar e morar juntos. Mas para muitos jogadores gays, negar relacionamentos entre o mesmo sexo refletiu sistemas do mundo real que foram arquitetados para negar a eles que vivessem sua vida e biologia. O ultraje se intensificou quando a Nintendo fez uma declaração dizendo que:

‘Tomodachi Life’ foi feito para ser um jogo excêntrico e engraçadinho, não um jogo que tenta promover discussões sociais.

Nintendo

Ao passo que Barrett se opõe à decisão da Nintendo – uma forma de afetar a discussão social independentemente da empresa achar isso ou não – ele entende como a situação emergiu.

Por um lado, a Nintendo é uma empresa familiar com uma imagem íntegra que mantiveram por décadas. Por outro, os produtos deles são populares entre pessoas gays. A empresa se encontrou entre os dois grupos e tentou fazer o melhor para fugir do problema ao invés de resolvê-lo. Não acho que entendem que o ‘familiar’ pode incluir os gays. As crianças não entendem o conceito de ser gay mais do que entendem o hétero. Não vejo mais ninguém cometendo esse erro depois disso ter dado tão errado para a Nintendo.

Patrick J. Barrett III

De fato, Barrett acredita que o mundo mudou de formas profundas nos 14 anos desde o lançamento do The Sims.

Naquela época, não era considerado ‘normal’ ser gay ou lésbica. Alguns até viam perigo nisso. Mas no ‘The Sims’ era normal e seguro ser uma pessoa gay. Foi a primeira vez que pudemos jogar um jogo livres para sermos nós mesmos e sermos representados. Foi um momento mágico quando meu primeiro casal gay de Sims se beijou. Às vezes me pergunto como diabos conseguimos nos safar com isso.

Patrick J. Barrett III

Artigo escrito por Simon Parki (The New Yorker), traduzido e adaptado por Alala Sims e Os Entendidos.

pedrinhosr
Te faço rir (as vezes) no twitter do Alala Sims. Jogador "quase" profissional de The Sims e muito fã de super-heróis. Filmes/séries de ficção científica e animação são meu ponto fraco. Minha maturidade não condiz muito com o que parece.